Olhares “estranhos”, falta de informação, preconceito velado ou, muitas vezes, escancarado, fazem parte da vivência quase diária de quem é umbandista. O termo se refere a quem pratica a Umbanda, uma religião afro-brasileira.

O que deveria ser tratado apenas como uma escolha pessoal, infelizmente, é motivo para a prática da intolerância religiosa, que costuma descambar para a violência, inclusive, física.
A religião completa 117 anos em 2025 no Brasil. Levantamentos apontam que quase 500 mil pessoas façam parte da Umbanda no país. No entanto, acredita-se que o número seja bem maior. Exatamente por conta do preconceito, muitos adeptos preferem “esconder” a opção religiosa.
A umbanda tem três conceitos principais: caridade, luz e amor. O significado de umbanda é “arte de curar” e resume a missão dos religiosos: ajudar pessoas através da ancestralidade e do amor.
Os rituais, cerimônias e práticas religiosas da Umbanda são realizadas em um espaço, considerado sagrado pelos umbandistas, chamado terreiro. No Acre, principalmente em Rio Branco, existem dezenas de espaços, apesar de não existir dados oficiais de quantas pessoas fazem parte da religião no Estado.
E como é fazer parte da Umbanda em meio ao preconceito e a intolerância religiosa? Como é sentir, “na pele”, as marcas da falta de informação que levam ao pré-julgamento? Como é ser apontado como “macumbeiro”, um termo popular, com conotações pejorativas, utilizado para descrever praticantes das religiões afro-brasileiras, incluindo a Umbanda?
O Portal Acre conversou com a jornalista acreana Maria Meireles, 34 anos, que abriu seu coração e compartilhou sua trajetória de fé, resistência e acolhimento na Umbanda. Em uma entrevista, Maria contou sobre a necessidade do combate à desinformação, o racismo institucional e das experiências de intolerância, mas também do encontro com a própria espiritualidade que encontrou na religião.
“Estou na Umbanda há seis anos, indo para o sétimo. Comecei a frequentar meu terreiro, a Tenda de Umbanda Luz da Vida, que fica no Quixadá, em meados de 2018, como consulente, que é o nome que damos às pessoas que vão apenas se consultar ou visitar, mas que não fazem parte da corrente mediúnica, e fui a convite de uma amiga”, compartilha.

Ao passar por um processo complicado em sua vida, Maria conta que mesmo sem referências religiosas próximas, ela sentiu uma forte intuição de ir a um terreiro de Umbanda.
“Na época, eu estava vivendo um processo muito complicado da minha vida. Sempre fui uma pessoa muito intuitiva. O único terreiro do qual eu tinha ouvido falar não me tocava o coração, e eu sempre respeitei muito isso. Comecei a sentir vontade de ir a um lugar que me desse respostas para o que eu estava vivendo”, conta.
Nascida em um lar católico, onde chegou a ser coroinha e passar pelos sacramentos, ela foi se afastando da religião conforme amadurecia. Tentou o espiritismo, mas foi na Umbanda que sentiu o verdadeiro reencontro com a espiritualidade.
“A espiritualidade que encontrei na Umbanda me deu uma nova lente para enxergar a vida. Antes, minha visão era embaçada. A Umbanda me deu óculos. Me ensinou a fechar os olhos de fora e abrir os olhos da alma. A olhar para dentro, a me enxergar, a dar os perdões que eu precisava dar a mim mesma, a curar feridas antigas”, detalha.
Espaço de acolhimento
Os terreiros são comunidades que alimentam e estruturam famílias. São espaços de cuidado. “Quando fazemos nosso mutirão de limpeza, todo mundo come no terreiro. Nós já pagamos aluguel de irmão que não estava bem, já distribuímos cestas básicas, fazemos mutirão de doações para o educandário. O terreiro é uma comunidade que se ajuda”, destaca Maria.
Foi na Umbanda que Maria conheceu sua companheira. “Nos casamos de forma muito tranquila. Antes disso, nunca havia me relacionado com uma mulher. Então, esse foi um grande encontro e, acima de tudo, um encontro comigo mesma”, comenta.

Combate à desinformação
No Brasil, o Estado se define como laico. Mas, na vivência de quem segue religiões de matriz africana, como a Umbanda, a realidade é outra. A religião ainda carrega o peso da desinformação e do preconceito.
“Nós temos nossas ritualísticas. Em certos períodos, não comemos determinados alimentos e usamos apenas roupas brancas. Falta compreensão da sociedade sobre isso. As pessoas que têm essa prática religiosa também ocupam diversos espaços na sociedade, estão inseridas no mercado de trabalho. Mas ainda enfrentamos dificuldades”, argumenta.
A falta de conhecimento sobre as religiosidades faz com que se crie uma corrente de desinformação. “Se você sai com uma guia, aquele colar que carrega a energia do orixá, da entidade, da mediunidade, as pessoas te olham diferente. Se você sai todo de branco, o julgamento aumenta.
Existe muita distorção e desinformação, principalmente sobre Exu e Pomba Gira. Eles são muito discriminados, porque foram estigmatizados”, explica.
Maria destaca que a espiritualidade na Umbanda é um caminho de autoconhecimento e equilíbrio. “Eu desconheço uma espiritualidade que tenha como princípio prejudicar o ser humano. Não acredito em uma espiritualidade que amarre alguém a viver com outra pessoa contra a vontade. Para mim, espiritualidade e religiosidade, que são coisas diferentes, existem para te fazer melhor, para você se perdoar, para você se curar, para ser feliz, para encontrar seu bem viver”.
Racismo institucional e falta de políticas públicas
Para além dos julgamentos e agressões sociais, há um obstáculo ainda mais difícil de vencer: o racismo institucional. Maria relembra o caso da sua mãe de santo, mãe Marajoara, que foi vítima de intolerância religiosa e precisou recorrer à Justiça após ser atacada por um pastor.
“Nas escolas, nas delegacias, em todos os órgãos públicos, há despreparo. Quando minha mãe sofreu uma agressão, tivemos dificuldade até para registrar um boletim de ocorrência. A funcionária achava que ser comparada ao diabo não era violência. Tivemos que lutar muito. E ainda ouvimos: ‘Ah, mas vocês sabiam que isso podia acontecer’. Como se a culpa fosse nossa, por existir, por viver nossa fé. Os órgãos estão despreparados”, conta.
Outra situação de preconceito vivida por pessoas próximas foi um episódio de intolerância religiosa que sua filha sofreu. “Houve uma situação de intolerância religiosa na escola, com outra criança dizendo que ela era ‘macumbeira’ e faria ‘macumba’ contra uma colega. Fomos à escola, buscamos posicionamento, mas ainda há muito descaso por parte do Estado no combate à intolerância religiosa”, destaca.
A ausência de políticas públicas também impõe limites concretos, como o acesso aos terreiros, por exemplo. “Falta estrutura para os espaços religiosos. A estrada até o nosso terreiro, por exemplo, está cheia de buracos. Às vezes voltamos tarde e ainda colocamos nossa vida em risco por conta disso. Recentemente, depois de muita luta, conseguimos colocar postes de energia no início da estrada, porque antes era tudo escuro”, explica.
Ela reforça que a maior violência sofrida é o racismo institucional. “Ele anula a nossa cidadania, a nossa dignidade. Ainda não temos política pública de verdade. Têm leis que não funcionam, dados que não existem. Não temos estrutura. O preconceito das instituições é o que mais nos silencia. E isso se reflete na sociedade. As pessoas aprendem com o que veem na escola, no trabalho, nos serviços. E esses lugares não estão preparados para a diversidade”, ressalta.

Resistência como cotidiano
Mesmo diante de tantas barreiras, o terreiro continua sendo um espaço de resistência e transformação. “Mas seguimos resistindo. Lutando. E cobrando. Porque somos cidadãos. No terreiro, somos um coletivo de 50 pessoas. E são 50 famílias. Muita gente que precisa de apoio. E quanto menos conhecimento e acesso essas pessoas têm, mais invisíveis elas se tornam. E isso precisa mudar”, enfatiza.