
Nesta segunda-feira, 17 de novembro, o Brasil celebra o 122 º aniversário de um dos marcos diplomáticos mais determinantes para sua configuração territorial: o Tratado de Petrópolis, firmado em 1903 entre Brasil e Bolívia. Mais do que um pacto de fronteiras, o acordo consolidou a presença brasileira no Acre, encerrou um longo ciclo de conflitos e abriu caminho para a integração definitiva da região ao País.
O episódio é reconstituído com rigor histórico no estudo O Tratado de Petrópolis — Interiorização do conflito de fronteiras, de autoria de Flávia Lima e Alves, publicado na Revista de Informação Legislativa. A análise da pesquisadora oferece um panorama detalhado das disputas geopolíticas, econômicas e diplomáticas que culminaram no pacto assinado em Petrópolis.
A corrida pela borracha e o princípio do conflito
Desde a segunda metade do século XIX, milhares de brasileiros — sobretudo migrantes nordestinos empurrados por secas sucessivas — ocuparam áreas amazônicas então sob soberania boliviana e, em parte, peruana. Eram fronteiras imprecisas, estabelecidas por tratados coloniais como os de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), mas incapazes de refletir a ocupação real da região.
O cenário muda radicalmente com a explosão da demanda internacional por borracha. Como lembra Alves, a vulcanização desenvolvida por Charles Goodyear e a ascensão da indústria automobilística transformaram o látex amazônico em insumo estratégico . A valorização do produto despertou o interesse da Bolívia e do Peru, reacendendo contestações sobre áreas até então negligenciadas.
Insurreições e tensões internacionais
Entre 1899 e 1902, a região viveu três grandes movimentos insurrecionais — liderados por José Carvalho, Luiz Galvez e Plácido de Castro — todos impulsionados pelo descontentamento dos moradores com a tentativa boliviana de impor controle efetivo sobre o Acre, especialmente após a criação do porto alfandegário de Puerto Alonso.
O episódio mais sensível, porém, surgiu com o Bolivian Syndicate, grupo formado por investidores dos Estados Unidos e do Reino Unido que arrendou a exploração da área por 30 anos. Para Alves, esse arrendamento transformou a disputa em questão de soberania, mobilizando o governo brasileiro diante da perspectiva de presença estrangeira armada às margens do Amazonas .
A entrada decisiva do Barão do Rio Branco
A crise atingiu seu ápice quando Rodrigues Alves assume a Presidência e nomeia José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, para o Ministério das Relações Exteriores. Foi ele quem reverteu a interpretação histórica que tratava o Acre como zona boliviana incontestável e defendeu a linha do paralelo 10º20’ como limite real previsto no Tratado de Ayacucho (1867).

Rio Branco apostou na diplomacia com “preparação para a guerra”, como descreve Alves. Ofereceu compra, permutas e concessões logísticas à Bolívia, sempre com o objetivo de impedir a instalação do sindicato estrangeiro e de garantir a soberania brasileira na área.
A vitória militar das tropas de Plácido de Castro em janeiro de 1903 acelerou o processo. Sem condições de manter controle no terreno, a Bolívia aceitou negociar.
O Tratado de Petrópolis: compensações, concessões e soberania
Assinado em novembro de 1903, o Tratado de Petrópolis estabeleceu:
· Cessão do Acre ao Brasil, garantindo soberania sobre 191 mil km² até então litigiosos;
· Pagamento de indenização de 2 milhões de libras esterlinas à Bolívia, além do acerto financeiro com o Bolivian Syndicate;
· Entrega de áreas fronteiriças brasileiras à Bolívia, em ajuste compensatório;
· Compromisso brasileiro de construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, facilitando o acesso boliviano ao Atlântico;
· Liberdade de navegação na bacia amazônica para produtos da Bolívia.
Conforme destaca Alves, o arranjo representou uma solução pragmática, consolidando a ocupação brasileira e afastando a ameaça de ingerência estrangeira na Amazônia .
O que faltou ao pacto: o Peru na disputa
A autora lembra que o tratado não encerrou todo o contencioso. O Peru reivindicava partes da mesma região e resistiu à exclusão das negociações. O país só aceitaria um acordo definitivo em 1909, também articulado por Rio Branco, que ampliou ainda mais o domínio brasileiro e consolidou os limites atuais.
Impactos internos e um litígio que atravessou o século
A anexação do Acre desencadeou um novo conflito — desta vez interno. O Amazonas reivindicava parte das terras incorporadas, alegando posse histórica. A disputa levou Rui Barbosa ao Supremo Tribunal Federal e se estendeu por décadas, com ecos que chegam à Constituição de 1988 e a ações judiciais ainda em debate, como observa Alves em seu estudo minucioso .
Legado para o Brasil do século XXI
O Tratado de Petrópolis transformou o Acre em Território Federal (1904) e, décadas depois, em Estado (1962). Mais do que um capítulo da política externa, o pacto moldou a geografia, a ocupação populacional e a estrutura federativa do País.
Para Flávia Lima e Alves, o episódio evidencia como decisões diplomáticas podem irradiar efeitos por mais de um século — sobre mapas, identidades, economias e contestações políticas. “A questão acreana”, afirma a autora, “é desdobramento direto das escolhas feitas em Petrópolis”.
Hoje, 122 anos depois, o acordo continua a ser lembrado como um triunfo da diplomacia brasileira, simbolizando a habilidade do País em exercer sua soberania pela negociação, sem renunciar à firmeza estratégica.








