Rio Branco, 25 de agosto de 2025.

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Atlas do Fogo revela o avanço das queimadas e a degradação do Acre em 17 anos

Pesquisa mostra áreas de recorrência das queimadas: Foto reprodução

Raimari Cardoso — Em colaboração especial para o Portal Acre

Uma pesquisa robusta e inédita acaba de lançar luz sobre o impacto das queimadas e incêndios florestais no Acre, entre os anos de 2005 e 2022. O livro “Atlas do Fogo no Estado do Acre: 2005-2022”, publicado pela Editora Dialética, reúne um esforço científico conduzido por Sonaira Souza da Silva, Mirian Soares de Amorim, Iarytssa Rocha Lima, Antonio Willian Flores de Melo e Igor Oliveira, professores e pesquisadores da Universidade Federal do Acre (UFAC).

A obra, fruto de quase duas décadas de análises, apresenta mapas e gráficos que permitem compreender onde e como o fogo tem se distribuído, diferenciando queimadas agropecuárias de incêndios florestais, distinção essencial para avaliar os efeitos socioambientais desses eventos, possibilitando interpretações que não apenas registram a devastação, mas também fornecem pistas essenciais para formulação de políticas públicas ambientais e agrícolas.

Os resultados apontam que, em 17 anos, o Acre registrou mais de 2,8 milhões de hectares de queimadas agrícolas e cerca de 519 mil hectares de florestas degradadas pelo fogo, muitas delas posteriormente desmatadas. O estudo mostra ainda que os Projetos de Assentamento e a região leste do estado concentram os maiores impactos, devido à fragmentação florestal e ao avanço do desmatamento. Já Terras Indígenas e Unidades de Conservação historicamente sofreram menos com o fogo, embora o número de queimadas tenha aumentado de forma preocupante nesses territórios nos últimos anos.

O livro reforça que as mudanças climáticas, associadas a secas extremas e práticas agropecuárias insustentáveis, tendem a intensificar os incêndios no futuro. Por isso, os autores defendem a necessidade urgente de políticas públicas de prevenção, adaptação e mitigação, que ofereçam alternativas ao uso do fogo e promovam um manejo agrícola sustentável.

Principais achados: um retrato do fogo no Acre

O estudo aponta que o fogo se consolidou como elemento transformador da paisagem acreana. Os dados dimensionam a gravidade:

Queimadas em larga escala – Entre 2005 e 2022, o Acre registrou 2,8 milhões de hectares queimados em áreas agrícolas. O levantamento mostra que 41% ocorreram em regiões recém-desmatadas, revelando a íntima ligação entre desmatamento e uso do fogo. Outros 59% atingiram áreas de agricultura e pastagens já estabelecidas, sinalizando que o fogo continua sendo uma ferramenta recorrente no manejo agrícola.

Degradação florestal preocupante – Foram identificados 519 mil hectares de florestas ainda em pé degradadas pelo fogo, um dado alarmante. Mais de um terço dessas áreas (36%) acabaram desmatadas até 2022, revelando um processo de degradação em cascata: primeiro o fogo, depois a derrubada definitiva.

Novos focos em áreas antes preservadas – Regiões tradicionalmente mais protegidas, como Purus, Tarauacá-Envira e Juruá, além de Unidades de Conservação, passaram a registrar aumento expressivo de queimadas. Para os autores, esse movimento indica uma expansão da fronteira do fogo e eleva o risco de perda de biodiversidade.

Resistência em Terras Indígenas – O levantamento mostra que Terras Indígenas e Unidades de Conservação apresentam os menores índices de fogo. No entanto, os pesquisadores alertam para um crescimento recente e preocupante das ocorrências nesses territórios, historicamente considerados barreiras naturais contra o avanço da degradação.

Secas extremas como catalisadoras – A análise reforça que episódios de seca — em 1998, 2005, 2010, 2016 e 2022/2023 — foram determinantes para a propagação das queimadas. O ano de 2005 é lembrado como o maior desastre já vivido pelo Acre em termos de fogo. Atualmente, a Amazônia enfrenta uma combinação crítica: 1°C a mais na temperatura média e 17% menos chuvas entre agosto e outubro, o que amplia a vulnerabilidade da floresta, estando o estado inserido nesse contexto.

A voz da ciência

Para Sonaira Souza da Silva, engenheira agrônoma, doutora em Ciências de Florestas Tropicais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGAMA/UFAC), a problemática das queimadas e da degradação continuada precisa ser tratada como um fator multidisciplinar. Segundo ela, o debate não pode permanecer restrito apenas ao desmatamento.

Estudo que mostra que apenas 40% das queimadas no Acre estão associadas ao desmatamento: Foto Bruno Kelly/Reuters

“A degradação pelo fogo, tanto no Acre quanto em toda a Amazônia, é frequentemente reduzida a um problema ambiental associado ao desmatamento. Esse fator é relevante, mas não explica tudo. Se continuarmos focando apenas nisso, deixamos de fora cerca de 60% do que realmente queima. É preciso tratar o tema das queimadas como uma questão multidisciplinar: ambiental, agrícola e de saúde pública. Só quando integrarmos esses três campos será possível enfrentar o problema de frente e realmente alterar esses números”.

A pesquisadora também destaca a importância do trabalho que resultou no Atlas. Segundo ela, a ausência de monitoramento específico para o Acre representava uma lacuna crítica no entendimento sobre o comportamento do fogo.

“Uma coisa que é importante, vou reforçar: por que fazer esse trabalho científico de monitorar as queimadas? Já havia metodologias consolidadas em grandes centros, como o — Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais — INPE, para medir desmatamento e indicar focos de calor. Mas nós ainda não tínhamos, para o estado do Acre, um levantamento detalhado que descrevesse o tamanho real dessas áreas queimadas”.

Sonaira ressalta que, ao conhecer a extensão das áreas atingidas, a ciência pode identificar padrões e vetores de ocorrência:

“Entender onde o fogo se espalha, como ele avança e como varia ao longo dos anos nos ajuda a compreender os fatores que o influenciam. Esse conhecimento é essencial para preparar a sociedade, dimensionar o problema e construir memória histórica”.

A cientista relembra ainda o ano de 2005, considerado o mais devastador da série histórica:

“Naquele ano tivemos 500 mil hectares de áreas agrícolas queimados e mais 300 mil hectares de floresta atingida. Foi o maior desastre de fogo da história do Acre. Quando olhamos para 2024, um ano crítico, vemos que ele ainda não superou a tragédia de 2005. Esse histórico é vital para mostrar que precisamos avançar no controle social, em políticas públicas, no monitoramento ambiental e na proteção da saúde”.

Entre tradição e urgência

O livro reconhece que, para muitos agricultores familiares, o uso do fogo ainda é a única tecnologia acessível para renovar pastagens ou preparar áreas de cultivo. Porém, sem políticas públicas consistentes que ofereçam alternativas viáveis, esse ciclo de destruição tende a se perpetuar. Os autores defendem que o monitoramento contínuo, aliado a incentivos e capacitação agrícola, é o caminho para reduzir a dependência do fogo e evitar que novos desastres se repitam.

Um alerta para o futuro

O Atlas do Fogo é mais que uma compilação de dados: é um documento de alerta. Ele mostra que o Acre já vive as consequências das mudanças climáticas e da pressão sobre seus ecossistemas. Se nada for feito, os episódios de 2005 e 2016 poderão se tornar cada vez mais comuns.

“O estudo é um chamado à reflexão sobre o fato de que compreender o passado recente do fogo no Acre é fundamental para pensar estratégias que evitem novos desastres e construam um futuro mais sustentável para a Amazônia”, afirma o engenheiro agrônomo e doutor em Ciências de Florestas Tropicais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Antônio Willian Flores de Melo, um dos autores do livro.

Nas palavras que encerram a obra, os autores ecoam uma lição antiga, atribuída ao historiador Heródoto: “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro”.

O livro “O Atlas do Fogo no Estado do Acre” está disponível no link: https://www.ufac.br/labgama/noticias/lancamento-do-livro-201catlas-do-fogo-do-estado-do-acre-2005-2022/Versao_Final_Livro_Atlas_Fogo.pdf.

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