
Raimari Cardoso — especial para o Portal Acre
A cerca de três quilômetros da zona urbana de Xapuri, saindo do bairro Sibéria, chega-se a uma pequena propriedade rural que há pouco mais de uma semana ganhou amplo destaque no noticiário estadual. Foi de lá que saiu o café vencedor da 3ª edição do Concurso de Qualidade do Café Robusta Amazônico do Estado do Acre (Qualicafé), promovido pela Secretaria de Estado de Agricultura (Seagri) em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Acre (Idaf).
Na área que esteve por décadas completamente improdutiva, remanescente do antigo seringal Boa Vista, margem esquerda do Rio Acre, nos limites da Reserva Extrativista Chico Mendes, ninguém mais acreditava que pudesse nascer algo de valor. A região era desconhecida, o chão era duro e seco, mas os agricultores José Sebastião de Oliveira e Ilda Dias Soares, acostumados à teimosia da vida rural, sabiam que a terra sempre responde de maneira positiva a quem se dedica a trabalhar nela com amor.
Vindos de longe — ele de Santa Tereza de Goiás e ela da vizinha Minaçu, no mesmo estado —, chegaram a Rondônia no começo dos anos 1980, passando por Ji-Paraná, que ainda se chamava Vila Rondônia, depois Buritis e Nova Califórnia, já na fronteira com o Acre, sempre trabalhando na agricultura e tendo a terra como único meio de sustento. Em 2013, o casal fincou raízes em Xapuri, na Colônia Bela Vista, que tem um total de 16 hectares.
Foi o estudo dos filhos que os trouxe para essa parte do Acre. José conta que, ao saber que o município tinha um campus do Instituto Federal do Acre (Ifac), a escolha se tornou natural. “A gente pensava primeiro nos meninos. Queríamos um lugar tranquilo, que tivesse escola boa, e encontramos isso aqui”, lembra. Em pouco tempo, a rotina de trabalho tomou conta dos dias. José e Ilda começaram plantando melancia, pepino e melão — esse último, de forma pioneira em Xapuri. Entregavam o produto em supermercados de Rio Branco, como Araújo e Atacale, até que o destino os reconduziu àquilo que parecia estar escrito desde sempre: o café.

De raízes mineiras, José e Ilda carregam no sangue a ligação com o grão que, em Xapuri e em outros municípios do Acre, começa a se tornar símbolo de uma nova fronteira agrícola sustentável. O cultivo do café robusta amazônico, adaptado às condições de clima e solo da região, tem sido apontado por especialistas como uma alternativa econômica de baixo impacto ambiental, já que contribui para o reflorestamento de áreas degradadas e dispensa o desmatamento. No Acre, o crescimento da cultura foi de 7,9% apenas neste ano, e a produção deve alcançar 5,3 mil toneladas, segundo o IBGE — a segunda maior alta da agricultura acreana em 2025.
“O café é uma cultura de raiz”
Na Colônia Bela Vista, o dia começa antes do sol raiar. O silêncio da madrugada é quebrado pelo barulho que José Sebastião faz ao passar o café, denuncia dona Ilda, que só após sentir o aroma que toma conta da casa se levanta. “Eu me levanto depois dele. Eu, que sou mulher, tenho direito de gozar desse privilégio”, brinca. “A gente levanta cedo, porque o campo não espera”, diz o marido, com a convicção de quem carrega décadas de lavoura. “É dormir mais cedo para acordar mais cedo. A roça é o nosso sustento, e é dela que a gente tira tudo.”
O agricultor reforça que antes do café, vieram o pepino, o melão e a melancia. “Produzimos melão de qualidade mesmo, entregando até três toneladas para os supermercados de Rio Branco”, conta o produtor, orgulhoso de um tempo em que poucos acreditavam que o Acre pudesse produzir frutas tropicais em escala comercial. Mas foi com o café — o mesmo que o acompanhava como legado dos pais mineiros do casal — que José encontrou o rumo certo.
Eles transformaram três hectares da propriedade em uma plantação do robusta amazônico. Cuidam de cada planta com a precisão de quem entende o ciclo da natureza: do plantio à colheita, tudo é feito com as próprias mãos. “O café é uma cultura de raiz”, define José. “Tem vida longa. É um trabalho que exige paciência, porque o resultado vem devagar, mas quando vem, é bonito de ver.”
O resultado, de fato, veio. Quando o nome de José Sebastião foi anunciado como vencedor da 3ª edição do Qualicafé, no Buffet Afa Jardim, em Rio Branco, no último dia 10 de setembro, o casal demorou alguns segundos para acreditar. “É muito orgulho, muito mesmo”, disse Ilda, emocionada. “Porque a gente vive do próprio solo, é dele que vem a nossa renda. Antes a gente investia em outras culturas, mas hoje é só o café. E saber que nós vamos a uma feira internacional do café, com um café de qualidade… isso não tem preço.”

Ela fala com a firmeza de quem entende o valor da conquista — não pelo troféu, mas pelo que ele representa. “Ganhar o prêmio é importante, claro. Mas mais importante é ter a certeza de que o nosso café tem qualidade, que ele vai ser entregue com orgulho. A gente conquistou esse patamar com muito esforço, com certificado, com avaliação técnica. Isso mostra que qualquer produtor pode chegar lá, desde que lute e siga passo a passo. É experiência, é acreditar.”
“Café também é coisa de mulher”
Entre as fileiras verdes da lavoura, não há espaço para hierarquia. O trabalho é dividido, e as decisões também. Dona Ilda faz questão de dizer que o sucesso da família não seria possível sem o protagonismo feminino no campo — algo que, para ela, ainda precisa ser mais reconhecido. “A mulher sempre esteve presente na roça, mas muitas vezes invisível”, afirmou durante entrevista que concedeu à Rádio Aldeia FM de Xapuri na última sexta-feira, 17. “A gente planta, colhe, cuida da casa, ajuda na gestão. Eu participo de todas as decisões, desde o manejo até a venda. É importante mostrar que o café também é coisa de mulher.”
O orgulho com que dona Ilda fala é o mesmo de quem sente que a vitória representa muitas outras agricultoras. O prêmio no Qualicafé, mais do que um título, é também um símbolo da presença feminina no campo, cada vez mais destacada e reconhecida, rompendo uma tradição que por muito tempo reservou o protagonismo de maneira exclusiva aos homens. Ela falou sobre isso em recente evento que reuniu mulheres ligadas ao setor rural, o 1º Encontro das Mulheres do Agro de Xapuri.
Das margens do Rio Acre para o mundo
Desde o anúncio da vitória no Qualicafé, a rotina na Colônia Bela Vista ganhou outro ritmo. Entre o cuidado com as mudas e a preparação para a próxima safra, o casal também encontra tempo para responder a telefonemas, conceder entrevistas e fazer planos. “A gente ainda está se acostumando com tudo isso”, confessa José, sorrindo. “Mas é bom ver que o nosso trabalho chamou atenção. A gente faz tudo com carinho, e agora o povo está vendo o valor do café de Xapuri.”
No início de novembro, José Sebastião e Ilda viajam para Belo Horizonte (MG), onde vão representar o Acre, junto com os outros 14 finalistas do Qualicafé, na Semana Internacional do Café (SIC) — um dos maiores eventos do setor na América Latina. É lá que produtores, torrefadores, exportadores e baristas de várias partes do planeta se encontram para discutir tendências, trocar experiências e, claro, provar os melhores cafés do Brasil.

“É um orgulho sem tamanho”, diz Ilda, com um brilho nos olhos. “Saber que o nosso café, feito aqui, com tanto esforço, vai estar lado a lado com cafés de Minas, do Espírito Santo, do mundo todo. E mais bonito ainda é pensar que vem da nossa terra, de Xapuri. A gente vai representar o Acre com amor, com responsabilidade e com fé.”
Ela fala com entusiasmo de quem sabe que o prêmio é só o começo. Já há contratos firmados para exportação — destinos improváveis para um café nascido no coração da floresta: China, Cingapura, Emirados Árabes, Bélgica. “Não é previsão, é certeza”, diz com convicção. “Isso é fruto de trabalho, de acreditar e de respeitar a natureza. É o nosso jeito de viver: plantar, colher e agradecer.” Atualmente, os produtores estão trabalhando com os processos burocráticos de registro da marca do café, com o suporte do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural — SENAR.
O ânimo com a vitória no concurso acreano não impede, contudo, que o casal de agricultores registre as dificuldades e a falta de estrutura para o transporte e o processamento do café que produzem. Um exemplo claro disso é a falta de uma usina de torrefação de café no município, o que os obriga a transportar a produção até Acrelândia para passar por esse processo. Isso não significa, porém, que o apoio estatal esteja totalmente ausente.
O apoio do Estado e do Município
O avanço da cafeicultura no Acre tem tido apoio direto do Governo do Estado e das prefeituras, que vêm investindo em tecnologia, capacitação e sustentabilidade. A Secretaria de Estado de Agricultura (Seagri) lidera as ações, com destaque para o Concurso de Qualidade do Café — Qualicafé, que vem revelando talentos locais e projetando o Acre no cenário nacional dos cafés especiais.
Entre as iniciativas, o Programa Solo Fértil tem papel estratégico ao melhorar a qualidade do solo e aumentar a produtividade de forma sustentável. “Esse é o momento de o Acre dizer ao mundo que produz café — e café de qualidade. Isso elevou o nosso estado a um patamar diferenciado, até porque as pessoas começam a entender o valor do nosso produto”, afirma o secretário José Luiz Tchê em reportagem produzida pela estatal Agência de Notícias do Acre.

Em Xapuri, a Prefeitura aposta na agricultura familiar como alternativa econômica ao desmatamento e tem colocado em prática um programa de destoca e mecanização de áreas voltadas para a agricultura familiar. De acordo com o secretário municipal Eliomar Soares, o Galego, o sucesso de produtores como José Sebastião e Ilda mostra que é possível produzir com qualidade e preservar a floresta. “Aquela área ficou improdutiva por muitos anos e agora, com a chegada das famílias e o apoio da gestão pública, voltou a ter vida e sentido. Os verdadeiros donos são as pessoas que moram, produzem e transformam o que antes era degradado em uma área fértil”, enfatizou.
O reconhecimento do casal vem em um momento em que a cafeicultura acreana dá passos largos. Cultivado em 19 dos 22 municípios, o café robusta amazônico tornou-se uma das grandes apostas do estado para unir desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Em Xapuri, esse equilíbrio é visível: cada pé de café plantado por José e Ilda é também um gesto de reflorestamento, uma prova de que é possível produzir sem derrubar a floresta.
Futuro com gosto de esperança
Perguntado sobre que mensagem deixa para outros produtores que buscam sucesso no cultivo do café, ele filosofa: “A terra é a nossa mãe. Tudo que a gente planta nela, ela devolve, se a gente cuidar direito.” O conselho, diz ele, vale para quem quiser seguir o mesmo caminho. “Não é só plantar porque o outro está plantando. É dedicar de verdade, ter amor pelo que faz.” Para ele, o café é mais do que uma cultura — é um modo de vida, uma promessa de futuro. “O café é diferente. Você colhe, guarda, ele espera por você. É uma cultura de paciência e de acreditar no futuro.”
É essa fé que move o casal José Sebastião e Ilda a sonhar com o que vem pela frente: ver mais famílias produzindo, uma pequena indústria surgindo em Xapuri, e o nome da cidade ganhando o mundo pelas mãos de quem planta com o coração. Porque, no fim das contas, o que floresce em Xapuri não é apenas o café, mas a certeza de que, com trabalho, união e amor pela terra, a floresta pode continuar de pé e o futuro pode ter, realmente, um gosto de esperança.