
O andar de baixo de uma casa assobradada na rua Vitorino Maia, em Xapuri, em frente ao estádio municipal Álvaro Felício Abrahão, abriga uma das memórias mais vivas e marcantes da história dos antigos seringais acreanos. Lá, mora a senhora Nadir Dias da Costa, de 100 anos de idade, parteira tradicional e benzedeira que durante décadas percorreu distâncias dentro da floresta para ajudar a trazer pessoas ao mundo. Ela nasceu no dia 12 de março de 1925, em uma colocação da qual ela não recorda o nome, no seringal Albrácia, às margens do Rio Acre.
Nesta semana, dona Nadir recebeu a reportagem do Portal Acre para contar um pouco da sua história, das lembranças e emoções que guarda de um tempo em que a vida da grande maioria dos acreanos era extremamente difícil, especialmente no interior dos seringais, onde nascer poderia ser considerado, sem nenhum exagero, um ato de coragem. Fomos lá a convite de uma amiga da família, a socióloga Jayce Brasil, que definiu essa heroína das matas acreanas de maneira categórica: “Ela é uma entidade viva”.
Acompanhada da filha mais nova, Maria Adélia, de 65 anos, ela descreveu, em seu tempo e à sua maneira, como era a vida no seringal e como se tornou parteira, um ofício que entrou em sua vida de maneira natural e inesperada. Ficou órfã dos pais quando tinha apenas 8 anos de idade e terminou de ser criada pelos irmãos mais velhos. Casou-se aos 15 ou 16, com o seringueiro Miguel Dias, e logo em seguida passou a ser parteira nos seringais sem ter uma lembrança nítida de como isso começou. “Não lembro bem como foi a primeira vez. Alguém precisou, eu fiz, e não parei mais”, conta.
A vida de uma parteira da floresta
Nadir ficou viúva cedo, aos 38 anos. Não mais casou e nem mais teve qualquer relacionamento amoroso. “Fui fiel na vida e na morte. Depois que meu velho foi embora, nunca mais tive outro homem”, ela afirma com um ar de orgulho. Teve 8 filhos, sendo 6 mulheres e 2 homens, 35 netos — bisnetos e outros descendentes ela não sabe dizer, assim como não consegue contar quantas crianças ajudou a virem ao mundo. Os pais eram do Ceará — ela chegou ao Acre na barriga da mãe, que se chamava Maria Cândida. O pai, ela não conseguiu recordar mais o nome, mas afirma que ainda guarda fortemente a sua imagem.
Sobre o ofício de parteira da floresta, ela relata que havia mês que não parava em casa, atendendo parturientes em diversas colocações. A locomoção era sempre a pé ou a cavalo, em um tempo em que não existiam os ramais como são hoje, mas apenas os caminhos pela floresta chamados de varadouros. “Fazia pela necessidade das pessoas, não tinha outro jeito de se nascer. Fazia um parto e já sabia de tantas outras mulheres que estavam perto de parir. E lá eu ia. Assim, aprendi a amar o que fazia”, enfatiza.
É importante ressaltar nesse ponto que não havia pagamento ou recompensa material pelo trabalho de uma parteira nos seringais naqueles tempos. Partejar era, de fato, um grande ato de amor e de solidariedade. Dona Nadir diz que jamais recusou um chamado e na grande maioria das vezes fazia os partos sozinha, com poucos recursos, mas com uma habilidade que só o dom explica. “Nunca morreu uma criança e nem uma mulher em minha mão”, ela afirma em um tom que mistura reverência e gratidão.

“O povo tinha uma fé muito grande em mim. Peguei muitos casos complicados, mas nunca perdi uma criança ou uma mãe. Eu chegava, colocava a mão na barriga e já sentia como as coisas estavam. Fazia uma oração e sempre acabava tudo bem”, ela reforça com os olhos direcionados ao teto da casa em que vive há cerca de um ano.
A filha, Maria Adélia, fala da rotina e do rigor da mãe quando viviam no seringal: “Ela nos deixava em casa quando saía para ‘pegar menino’. Isso acontecia de mês em mês e ficávamos só nós. Aí tínhamos que trabalhar, cuidar das coisas e até cortar seringa. Quando ela chegava, queria tudo feito, ela dava ordem para nós todos fazermos e tinha que ser feito”, expõe revelando uma nuance da personalidade forte da matriarca.
Sobre a vida no seringal, dona Nadir narra que a extração do látex era o principal meio de garantir a sobrevivência, mas não era o suficiente. No lar, na estrada de seringa e até no roçado ela fez de tudo um pouco. E além de fazer partos, ainda encontrava tempo para caçar, mesmo que não fosse habitualmente. “Só algumas vezes, mas atirava de espingarda”, revela com um sorriso. Ao ser perguntada quantos veados já matou, ela responde em meio uma risada: “Só um”. Em outro relato, descreve como se defrontou, na mata, com um bando de porcos queixadas: “Mandei a brasa. Não sei se caiu um ou dois”, completa, agora quase gargalhando.
Um século de fé e saúde
Católica a vida toda, Nadir é devota de São Sebastião. Uma de suas boas lembranças é quando a família se dirigia do seringal para a cidade para participar da festa do santo padroeiro, que é celebrada em 20 de janeiro, mesma data em que é comemorado o Dia da Parteira Tradicional. “Era muito bom quando a família vinha toda para a procissão. Era tudo muito bonito. Das poucas vezes do ano que vínhamos para a cidade”. Entre as seis irmãs, ela foi a única que seguiu a vida toda no catolicismo. Em meio às suas palavras é fácil perceber a relação íntima entre a fé e o ofício sublime que ela desenvolveu nos seringais.
Outra revelação vem da filha, Maria Adélia, responsável por fazer companhia para a mãe no dia de nossa conversa — as filhas fazem uma espécie de rodízio de acompanhamento da mãe. “Ela come de tudo. Gosta de toucinho e feijão. Come bem. Toma café da manhã tapioca e pão de milho e esvazia uma garrafa de café apenas no período manhã”.
Dona Nadir também dorme bem e tem sintomas leves de Alzheimer, considerando a sua idade. Há momentos em que esquece algumas poucas coisas sobre os filhos e netos, mas anda por toda a casa, frequenta a varanda e toma banho sozinha. A saúde da qual goza do alto de seu um século de vida impressiona.

“Ela tem uma saúde de ferro, não tem diabetes, não tem colesterol alto, nem é hipertensa, não teve Covid-19, e ainda coloca a linha na agulha”, diz a filha Maria Adélia, reforçando que dona Nadir enxerga muito bem e revelando que, além de parteira e dona de casa, a mãe ainda costurava para fora no seringal. “Ela enxerga muito bem, nunca foi a um oftalmologista”, acrescenta a filha.
Por volta do ano de 1980, Nadir deixou o seringal Sibéria, saindo da colocação Simitumba, na Reserva Extrativista Chico Mendes, para se radicar na cidade. Moradora histórica da rua Major Salinas, ela teve que mudar de endereço no ano passado em razão das grandes enchentes do Rio Acre terem se tornado mais frequentes. Porém, mesmo depois de se estabelecer na zona urbana, ela ainda fez partos em Xapuri a menos de quinhentos metros de distância da maternidade.
A amizade com Chico Mendes
Outro relato marcante trazido pela filha Adélia é de que dona Nadir tinha uma grande amizade com o líder sindical e ambientalista Chico Mendes. No fatídico dia 22 de dezembro de 1988, eles conversaram pela última vez. “Pouco antes de ser morto, ele esteve com ela. Ele gostava muito dela e sempre passava na casa dela para conversar”, afirma.
Perguntada sobre o fato, dona Nadir não consegue lembrar o que conversaram naquela data. Também não recorda a repercussão do assassinato e a grande movimentação que tomou conta de Xapuri naqueles dias conturbados. Mas descreve em uma única frase o que ele representou para ela: “Era um homem muito bom, um grande amigo.”
Testemunha do tempo
Aos 100 anos, dona Nadir Dias da Costa é mais que uma testemunha do tempo e da história. Ela representa um elo vivo entre o passado dos seringais e o presente urbano de Xapuri, uma mulher cuja fé e dedicação ajudaram a trazer ao mundo centenas de vidas — e que hoje, em sua serenidade centenária, segue inspirando gerações.
Sua história não ecoa apenas nas lembranças da família ou nas trilhas dos antigos varadouros, mas no modo como comunidades inteiras aprenderam a confiar, a compartilhar e a sobreviver. Em cada vida que ajudou a nascer, Nadir deixou uma marca que o tempo não apaga — a prova de que a força dos seringais também se revela na coragem de muitas mulheres, que como ela, ajudaram a construir o Acre em que vivemos.








