
A obra será entregue na próxima sexta-feira, 21 de novembro, coroando a luta de uma comunidade que transformou isolamento, dor e resistência em mobilização histórica
Na tarde da próxima sexta-feira, 21 de novembro, Xapuri viverá um momento que atravessou gerações, governos, crises, descrenças e tragédias: a inauguração da Ponte da Sibéria, primeira ligação terrestre definitiva entre o centro da cidade e o bairro situado na outra margem do rio Acre e toda a sua região rural que, segundo estimativas não oficiais, concentra entre 1,5 a 2 mil famílias ou cerca de 40% da população do município.
O que para muitos sempre foi apenas um projeto distante, para os moradores da Sibéria acreana foi durante décadas uma questão de vida, dignidade e sobrevivência. Entre esses moradores, nenhum nome representa tão bem essa caminhada quanto o de João Jorge Cosmo da Silva, figura que por anos liderou a Associação de Moradores e carregou, quase solitário em determinadas épocas, a tarefa de manter a chama acesa. “A ponte nasceu na década de 1980 dentro do coração do povo”, ele afirma com convicção.
Aos 59 anos de idade, João Jorge tem uma vida inteira dedicada à comunidade Sibéria. Professor e líder comunitário histórico, ele sempre esteve à frente das demandas voltadas para o desenvolvimento do bairro e para a melhoria de vida da população. Ainda emocionado ao lembrar do que viveu até aqui, ele descreve a obra que agora se ergue sobre o rio Acre como algo que jamais poderá ser medido apenas em toneladas de concreto ou milhões em investimento:
“Esse é um momento de grande felicidade para todos nós porque essa ponte não representa apenas uma ligação entre Xapuri e o bairro Sibéria, mas a realização de um sonho de muita gente. A comunidade vem se preparando há mais de 40 anos para receber esse presente. E ele chega como uma recompensa para uma luta que foi árdua, mas muito gratificante”, enfatiza o morador que vive no bairro desde que nasceu, no ano de 1965.
João recorda que a ideia de transformar o sonho da ponte em uma bandeira comunitária começou a ganhar forma quando o bairro crescia e as maneiras disponíveis de travessia do rio começavam a se tornar insuficientes. Com o tempo, o debate ganhou força, mobilizou moradores e chegou às rádios, às audiências públicas e às redes sociais — como em 2015, quando a campanha “Ponte Xapuri/Sibéria – Apoie essa ideia!” espalhou cartazes, vídeos e depoimentos pela internet.

“O rio separa vidas”
Por trás do sonho da ponte, há histórias que poucos de fora da Sibéria conhecem. Fatos que revelam que o problema nunca foi apenas atravessar um rio — mas sobreviver a ele. Por décadas, a travessia dependia de catraias e de uma balsa que operava entre ciclos de cheias e vazantes, entre motores precários e dias de filas quilométricas. Ambas tinham horários limitados e falhavam. E isso cobrava um preço alto da população.
João Jorge nunca esqueceu os episódios que sempre citava nas audiências, reuniões e reportagens: “Certa vez uma senhora deu à luz uma criança na cozinha da minha casa, durante a madrugada, porque não houve tempo de atravessar o rio pela catraia.” Em outra ocasião, disse ele, mãe e filho não resistiram após um acidente, pois a travessia noturna era impossível e o socorro não chegou. “Tiveram que velar ambos no salão da associação”, recorda.
E havia ainda o risco diário. Em 2012, uma catraia naufragou com quase vinte pessoas, deixando mortos e desaparecidos. O acidente expôs o que todos sabem: além de penosa e arriscada, a travessia não oferece qualquer segurança. Mesmo com ações pontuais da Marinha, como a obrigatoriedade do uso de coletes, pouco mudou. Os equipamentos permaneciam pendurados, nunca vestidos, até a exigência ser abandonada. Na balsa, as dificuldades também são grandes. Não raro, caminhões e carros menores caem nas águas. “O rio separa vidas e sempre cobra a sua conta”, acrescenta João Jorge ao fazer esses relatos.
A mobilização que mudou o rumo da história

A luta pela ponte veio de baixo para cima — coisa raríssima no Acre. Produtores, seringueiros, comerciantes, estudantes, pecuaristas, professores, padres, pastores e políticos de diferentes lados se reuniram em torno de uma comissão denominada “Pró-Ponte”, que em 2011 organizou uma audiência pública que parou Xapuri. Naquele histórico dia 7 de outubro, o comércio fechou e quase mil pessoas foram ao Painel dos Mártires — um ponto de referência para grandes encontros na cidade — para dizer ao mundo: “chega de isolamento”.
Foi ali que a ponte deixou de ser uma pauta de um bairro e se tornou um clamor de uma cidade inteira. O prefeito da época esboçou um projeto, deputados estaduais e federais se comprometeram, alguns anunciaram emendas, outros defenderam a urgência em plenário. Era o primeiro passo concreto — ainda que lento. A partir dali, a ponte deixou de ser utopia e passou a ser uma questão de tempo.
O projeto finalmente saiu do papel
Anunciada pelo governador Gladson Cameli ainda em seu primeiro mandato como uma das prioridade do seu governo, os pilares da Ponte da Sibéria começaram a ser levantados em 2022, com investimentos da ordem de R$ 40 milhões — R$ 25 milhões do Governo do Estado e R$ 15 milhões de emenda do senador Márcio Bittar, segundo dados divulgados pelo Governo do Estado por meio da estatal Agência de Notícias do Acre.
Com imponentes 363 metros de extensão, a estrutura será capaz de garantir circulação 24 horas; permitir socorro rápido; facilitar o transporte da produção; encurtar distâncias; integrar sistemas de saúde e educação; facilitar o trabalho das forças de segurança pública; e gerar novas frentes econômicas. Isso sem contar o valor simbólico — talvez o mais forte de todos. Como diz João Jorge, a ponte é “uma justiça às pessoas que perderam a vida porque o rio não pôde ser atravessado a tempo”.
Para João, agora às vésperas da inauguração, a ponte não representa apenas a superação das dificuldades do passado, mas um novo patamar de consciência sobre o futuro da cidade. Ele reforça que o momento exige reconhecer o impacto real da obra no desenvolvimento local:
“O que precisamos agora é enaltecer a importância dessa ponte para Xapuri e para o povo da Sibéria. Uma comunidade cresce todos os dias, mas só se desenvolve quando tem condições reais de ir e vir, de viver com dignidade. Esta obra simboliza justamente isso: libertação, desenvolvimento e a certeza de que estamos entrando em uma nova fase.”
Da utopia à concretização
Nesta sexta-feira, 21, Xapuri deixará de ser duas cidades separadas por um rio e passará a ser uma só. A Ponte da Sibéria não é a redenção de todas as demandas — ainda falta muita coisa: um projeto de urbanização e saneamento, ruas mais estruturadas, um novo hospital, fortalecimento do turismo — mas pode ser considerada como uma virada de chave, o início de um novo capítulo.

E quando os primeiros moradores atravessarem a ponte, muitos lembrarão que tudo começou com um grupo pequeno de homens e mulheres que se recusaram a aceitar o isolamento como destino e resolveram apostar em um sonho. Entre eles, um em especial: João Jorge Cosmo da Silva, o professor e líder comunitário que viu o sonho nascer, crescer, ser desacreditado, resistir e — enfim — se tornar realidade.








