Rio Branco, 21 de novembro de 2025.

O que resta quando o feriado pelo Dia da Consciência Negra encerra e o calendário vira?

Ruby sendo acompanhada de agentes federais para, simplesmente, poder estudar em uma escola de “brancos”

Ontem, quinta-feira, 20, foi o Dia da Consciência Negra. Uma data que sempre chega carregada de discursos, campanhas, hashtags, postagens prontas, eventos… e, no dia seguinte, costuma desaparecer como se o assunto tivesse prazo de validade.

Mas hoje, decidi fazer justamente o contrário, resolvi escrever um dia depois, porque esse é o tipo de reflexão que deveria estar sempre presente.

Ao pensar no tema deste artigo me peguei pensando na história de Ruby Bridges. Se você nunca ouviu esse nome, vale conhecer, porque ele muda a forma como a gente enxerga esse tema.

Ruby tinha apenas seis anos quando se tornou a primeira criança negra a estudar em uma escola pública “para brancos” em Nova Orleans, Estados Unidos. Isso foi em 1960, apenas seis anos depois de a Suprema Corte americana declarar que separar crianças negras e brancas em escolas diferentes era inconstitucional. Mas, na prática, quase nenhum estado aceitava cumprir a decisão.

Quando Ruby foi matriculada na William Frantz Elementary School, a cidade explodiu em protestos. Adultos brancos que eram pais e mães de alunos brancos, gente que se dizia “de bem”, lotaram a porta da escola para gritar contra uma criança. Chamavam-na de “ameaça”, seguravam cartazes pedindo que ela fosse expulsa, prometiam violência.

Professores se recusaram a dar aula se ela entrasse, pais retiraram seus filhos da escola em massa e Ruby só conseguiu atravessar aquele corredor de ódio porque quatro agentes federais a escoltavam todos os dias. Uma menina de seis anos, cercada por homens armados, para simplesmente estudar.

Essa imagem é sempre apresentada como história antiga, mas Ruby está viva e tem 71 anos. Ou seja: o racismo que tentou expulsá-la da escola não está em um passado distante, ele está numa geração próxima e segue presente na nossa.

Quando vejo notícias recentes Brasil afora, percebo que o corredor de ódio e racismo não desapareceu. Apenas mudou de cenário.

Aqui, pessoas negras não precisam de escolta federal para entrar na escola, mas precisam sobreviver a outras portas fechadas. Precisam passar por seguranças que as seguem em lojas, por olhares que suspeitam antes de perguntar, por pessoas que esperam menos, por olhares que julgam e punem, por políticas que as ignoram.
Precisam sobreviver a adultos que, assim como os que gritaram com Ruby, acreditam que algumas pessoas não deveriam ocupar certos espaços.

E, às vezes , e essa é a parte mais dolorosa esse pensamento vem justamente de pessoas negras.

Quando eu ainda era adolescente vi uma cena que nunca saiu da minha cabeça… eu visitava um casal de idosos com meus pais: ele negro, ela branca, e no meio da conversa começaram a reclamar do filho negro, que estava noivo… A noiva? “Morena”, disseram, com um tom que parecia acusação.

Foi então que ouvi a frase que nunca saiu da minha cabeça: “Na nossa família, quatro pés pretos não deitam numa cama!” Eu tinha só onze anos e aquilo foi absurdamente assustador, principalmente porque o jovem casal era de pessoas adultas, funcionais, concursadas, bem-sucedidas… gente de vida resolvida, sabe? E aqueles pais poderiam citar o orgulho desse histórico, mas estavam focados na crítica preconceituosa que me atravessou como um soco silencioso.

Eu já era uma pequena “justiceira” e vi o racismo se manifestando naquelas palavras e vindo de pessoas que deveriam entender que a cor da pele não delimita nada. Vi o preconceito nascendo onde deveria haver acolhimento e respeito… dentro de casa! Não na rua, não na escola, não na boca de um agressor branco, mas pronunciado por pessoas negras.

Era o racismo estrutural mostrando sua sutileza cruel: o tipo que não precisa de muros separados, nem de placas dizendo “somente brancos”. O tipo que se infiltra nas famílias, nos afetos, nos relacionamentos, nos padrões de beleza, nas escolhas de quem se ama. O tipo que convence algumas pessoas de que “melhorar a família” significa clareá-la. O tipo que faz vítimas repetirem o discurso que as machuca.

E quando lembro daquela frase absurda: “quatro pés pretos não deitam numa cama”, vejo o mesmo mecanismo que tentou impedir Ruby Bridges de entrar na escola: a crença de que pessoas negras não devem ocupar determinados lugares.

O Brasil não precisa de cartazes racistas. Ele tem jovens negros mortos “porque pareciam suspeitos”, crianças negras humilhadas em elevadores, mulheres negras perseguidas em lojas, trabalhadores negros impedidos de entrar no próprio condomínio, adolescentes negros algemados em supermercados, casos e mais casos que estampam manchetes.

E tem também o silêncio de uma sociedade que finge se importar, mas que não se posiciona de fato, por meio de políticas públicas efetivas.

A verdade é que Ruby Bridges abriu a porta de uma escola, mas o mundo ainda tenta fechar portas todos os dias… nos Estados Unidos, no Brasil, no Acre, no bairro ao lado. E se tudo isso ainda parece exagero, os números mostram que não é.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sete em cada dez pessoas assassinadas no Brasil são negras. O Ipec aponta que 63% dos negros já sofreram discriminação racial, e entre jovens negros, esse número sobe para 72%. E, no mercado de trabalho, dados do IBGE mostram que pessoas negras recebem, em média, 36% a menos que pessoas brancas, mesmo quando têm escolaridade semelhante.

Sem contar a desigualdade educacional no Brasil. Não estou falando de opinião, estou falando de fatos. Pesquisas de instituições como o Insper, Ipea e Todos Pela Educação mostram que estudantes negros, em média, tiram notas mais baixas, não por falta de capacidade, mas por falta de acesso. É consequência, não causa.

Eles são maioria nas escolas com pior infraestrutura, nas salas mais cheias, nos bairros mais vulneráveis. Crescem com menos acesso a livros, internet, cursos, aulas de reforço. Muitas vezes estudam depois de um dia inteiro de trabalho ou depois de cuidar dos irmãos menores. Carregam nas costas uma realidade que o Brasil insiste em chamar de “mérito”.

E existe ainda o racismo escolar, silencioso, diário… que desestimula, humilha, descredibiliza. O que mina a autoestima acadêmica não é a prova, é o ambiente.

Por isso a tal pesquisa do Insper encontrou um dado gritante: mesmo quando um estudante negro e um estudante branco tiram exatamente a mesma nota no Enem, o jovem negro tem menos chances de entrar em cursos concorridos. Não porque ele não seja bom, mas porque existe um país inteiro empurrando-o para fora desde muito antes da prova começar.

Nada disso é coincidência… É estrutura! E é por isso que a história de Ruby Bridges, uma criança negra precisando de agentes federais armados para entrar numa escola pública, não é um conto distante, é um espelho.

Um espelho que o Brasil insiste em virar para o lado… O Brasil que gosta de repetir que “somos todos iguais”, mas os dados, as ruas e as salas de aula contam outra versão. Uma versão incômoda.

E no final das contas, talvez a consciência negra seja exatamente isso: um convite ao incômodo, à honestidade, à coragem de admitir que ainda não somos o país que contamos que somos.

Porque enquanto a cor da pele continuar definindo quem chega e quem fica para trás, o futuro seguirá repetindo o passado e Ruby continuará precisando do Estado para garantir que ela consiga caminhar, todos os dias, para dentro da mesma escola, enquanto “cidadãos de bem” vorazes e preconceituosos gritam “cheios da razão” a cada Dia da Consciência Negra..

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Daigleíne Cavalcante

Daigleíne Cavalcante é jornalista com 17 anos de experiência, palestrante, mentora e estrategista em comunicação e oratória.

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