Raimari Cardoso
A mais recente tensão em torno de uma região conhecida como Maloca, dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, em Xapuri, reacende um dilema que já se arrasta por décadas: como garantir que uma unidade de conservação funcione de fato para os fins a que se destina — preservação ambiental com justiça social — num território onde as promessas fundadoras foram sendo corroídas pela omissão do próprio Estado?

No entanto, um conflito que se repete, se agrava e se judicializa continuamente é, por definição, um fracasso do poder público como mediador e articulador de soluções reais. A judicialização da disputa na Maloca, que opõe ocupantes ao ICMBio, não responde à pergunta mais urgente do debate: por que o Estado brasileiro nunca enfrentou seriamente a regularização fundiária e o ordenamento territorial da Resex, especialmente em áreas sabidamente problemáticas?
É importante deixar claro, desde o início, que o ICMBio atua dentro da legalidade. A Resex Chico Mendes é uma unidade de conservação regida por normas específicas — um plano de uso sustentável com limites estabelecidos em lei. A pecuária extensiva que cresce de forma descontrolada em pontos como a Maloca desrespeita esses preceitos, e o órgão ambiental cumpre, tecnicamente, seu papel de fiscalização e controle.
Criada em 1990, logo após o assassinato de Chico Mendes, a reserva que leva seu nome foi concebida como um modelo pioneiro de uso sustentável da floresta. Sua proposta — conservar o bioma amazônico com base no protagonismo das populações tradicionais — foi, e ainda é, inspiradora. No papel, isso se traduz em um território delimitado, com concessões de uso a extrativistas organizados, fiscalização ambiental e fomento a atividades sustentáveis, como o manejo de borracha, castanha e madeira de baixo impacto.
Na prática, o que se viu foi uma sucessão de omissões. Faltou apoio técnico. Faltou política pública estruturante. Faltou crédito consistente para o extrativismo. Faltou presença permanente do Estado. Em vez disso, cresceram o abandono, o desmatamento e, como consequência natural, a pecuarização da Resex — não porque seus moradores quisessem destruir a floresta, mas porque não lhes foi oferecida alternativa viável de subsistência.
É neste cenário que se insere a região da Maloca, um fragmento altamente pressionado da Resex, localizado entre Xapuri e Epitaciolândia. Ali, famílias vivem há muitas décadas — algumas com vínculos históricos com a própria luta extrativista, outras com perfis diversos. Algumas dessas pessoas afirmam ter obtido cartas de anuência, financiamentos rurais, licenças para roçados, o que indica que, em algum momento, suas presenças foram reconhecidas, ou ao menos toleradas, pelo próprio Estado.
Se há ali ocupações irregulares e pessoas que não correspondem ao perfil extrativista ou não são beneficiárias da Resex — e ninguém está duvidando disso —, também existem casos em que a linha entre legalidade e legitimidade se torna borrada. Há gente que criou seus filhos naquelas terras e que está lá há mais de 80 anos, que investiu tempo, suor e esperança numa região que agora é classificada como área de desmatamento ilegal.
O problema central, portanto, não está apenas na ilegalidade da ocupação, mas na ausência crônica de uma política pública consistente para lidar com ela. O Estado brasileiro parece depender apenas do Judiciário — que age pontualmente, conforme os recursos chegam — e da repressão administrativa, enquanto evita fazer o trabalho mais difícil: sentar à mesa, olhar caso a caso e decidir, com base em critérios técnicos e sociais, quem deve sair, quem pode ficar e sob quais condições.
Mais ainda: onde está o plano de transição para aqueles que terão de sair? O que será feito das famílias que vivem exclusivamente da terra que agora é alvo de embargo? Onde está o programa de reassentamento rural, a compensação, o crédito subsidiado para retomar atividades compatíveis com a conservação?
A falta de resposta a essas perguntas é o que alimenta o ciclo de conflito, e não apenas a resistência dos ocupantes ou a atuação do ICMBio.
Neste fim de semana, produtores rurais bloquearam parcialmente a BR-317 e a Estrada da Borracha, exigindo abertura de diálogo e liberação de gado apreendido. Não é a primeira vez que isso ocorre. E é provável que, como em outras ocasiões, a reação seja conter o protesto com forças de segurança — um curativo de curto prazo para uma ferida que o Estado se recusa a tratar com seriedade.
Não se trata de defender ilegalidades nem de criticar quem cumpre a legislação. Trata-se de lembrar que, em temas fundiários, a lei sozinha não resolve — especialmente quando aplicada de forma seletiva e tardia. Resolver o impasse na Maloca exige coragem institucional para fazer o que não foi feito em três décadas: governar a Resex de forma efetiva, em vez de apenas vigiar seus escombros.
Raimari Cardoso é natural de Xapuri e se define como radiojornalista. Com 38 anos de atuação no rádio acreano, dedica sua trajetória à cobertura de temas que envolvem as comunidades locais.